Artigo do Público de 8 de Novembro de 2013.

23-11-2013 17:30

Desligados conta três histórias de crimes na Internet a partir de casos reais. Há mais de um milhão de cibervítimas todos os dias no mundo. Falámos com o realizador, e com especialistas em cibercrime e segurança para perceber como lidar com este “faroeste”.

Redes sociais em que é fácil criar perfis falsos, chat rooms onde se pode falar com estranhos que a pouco e pouco nos vão conquistando a confiança, ou onde podemos ver adolescentes a despir-se, vozes que julgamos amigas do outro lado de um ecrã.

Em Desligados, o filme de Henry Alex Rubin que agora estreia em Portugal, a Internet é um mundo de potenciais ameaças. Mas, explica o realizador numa entrevista por email ao Ípsilon, este pretende ser mais “um filme sobre o poder e a importância das relações humanas do que sobre os perigos da Internet”.

Desligados conta três histórias: uma envolve dois adolescentes que assumem um perfil falso para enganar um terceiro; outra é sobre um casal que vê todo o dinheiro das suas contas bancárias desaparecer depois de a mulher se ter tornado amiga de um desconhecido num chat room de um site onde pessoas que perderam os filhos partilham a sua dor; e a terceira mostra como uma jornalista ambiciosa e ansiosa por conseguir uma história de adolescentes que fazemstriptease online, acaba por cometer um crime ao pagar para falar com um deles.

Partem, todas elas, de casos reais retirados de jornais, conta Alex Rubin. “Quis realizar este filme porque se baseia em acontecimentos reais, e porque o guião tem uma visão de grande compreensão de personagens que têm falhas, que lutam para superar a dor e que anseiam estabelecer relações com os outros. Todos nós já sentimos isto”. A tecnologia pode ser o meio pelo qual se tenta chegar aos outros – mas por vezes é o meio errado. “Podemos estar a fazê-lo ignorando as pessoas sentadas ao nosso lado. Quantas vezes vemos pessoas a jantar e a olhar para os telemóveis em vez de falarem uma com a outra?”

Alex Rubin, que anteriormente realizou sobretudo filmes de publicidade e um documentário, diz ter mantido em Desligados um lado de documentário. “Para cada uma das histórias do filme falei com pessoas envolvidas em casos semelhantes para que todos os pormenores estivessem correctos. Podemos dirigir pessoas com a cabeça ou com o coração. Se sinto alguma coisa durante a rodagem de uma cena, sei que me estou a aproximar da verdade. A informação passa por nós como num passador nos dias que correm. Mas a verdade é como um murro no estômago. Há muito caos e não o vemos a aproximar-se, mas percebemos quando ele nos atinge. A minha grande esperança é ter feito um filme que é fiel aos nossos tempos”.

A técnica que utiliza para filmar é a do documentário, “usando duas câmaras em simultâneo, filmando à distância e quando os actores não se estão a aperceber e permitindo-lhes que improvisem ou façam cenas completas livres da tirania da continuidade”, explica.

As três histórias de Desligados são, portanto, reais – e, mais do que isso, frequentes. “O ciberbullying é tão comum que vários estados norte-americanos estão a aprovar legislação para o criminalizar”, diz Alex Rubin. “A pornografia na Internet é um negócio que vale três mil milhões nos Estados Unidos. E o Relatório Norton de Cibercrime de 2011 [um dos maiores estudos mundiais sobre cibercrime partindo de relatos de vítimas] calcula que existem 14 vítimas de cibercrime por segundo; ou mais de um milhão de vítimas todos os dias.”

Como utilizadores da Internet, somos todos potenciais vítimas (basta pensar nas revelações do antigo analista informático norte-americano Edward Snowden de que a Agência de Segurança Nacional dos EUA realiza escutas e controla emails, violando a privacidade de milhões de pessoas em todo o mundo). Mas somos também potenciais criminosos – e, o que é particularmente grave, podemos estar a ser criminosos sem o saber, quer porque tenhamos cometido involuntariamente um crime, quer porque a nossa identidade foi usada para cometer um crime. E como lidamos com isto? Manuel Lopes Rocha, advogado especializado em questões de cibercrime, lembra que “há tentativas diárias” de nos enganarem, por exemplo com emails que nos anunciam que ganhámos um prémio ou em que alguém pergunta se pode fazer uma transferência de dinheiro para a nossa conta. São formas – neste caso pouco subtis – de conseguir acesso aos nossos dados pessoais. Muitas fraudes, refere Manuel Rocha, usam nomes de instituições bancárias ou outras para tentar dar mais credibilidade ao golpe.

Tito de Morais, fundador do projecto Miúdos Seguros na Net (www.miudossegurosna.net) sublinha que o primeiro nível da nossa defesa pode estar numa coisa tão básica como desligarmos as sessões que temos abertas quando saímos de um computador, sobretudo se este estiver num espaço público. “Os miúdos não têm a rotina de terminar as sessões. Se não criam essa rotina em casa, quando chegam a uma biblioteca, à escola ou a casa de um amigo, isso também não acontece, e o utilizador seguinte tem acesso a todos os dados, informações, pode mandar mensagens em nome dele, etc.”. Além disso, continua Tito de Morais, “as fotos de perfil são públicas por defeito e fáceis de copiar, e isso permite fazer perfis falsos”. Nestes casos o que há a fazer é denunciar esse perfil como sendo falso.

Formas de defesa

Há várias situações destas que são crime, e isso é algo que muitos jovens não sabem. “A Internet traz uma realidade diferente. Ao contrário dos media tradicionais em que os jovens eram meros receptores, agora são potenciais criadores de conteúdos, e muitas vezes não têm noção de que o que começa como uma brincadeira a certa altura deixa de o ser”. Como acontece no filme, “muitas vezes não têm noção de que ao entrarem numa conta de terceiros ou ao criar um perfil falso estão a cometer um crime e esquecem-se que as autoridades dispõem de mecanismos que permitem identificar o autor”.

Há também cada vez mais formas de defesa, mas, resume Francisco Fonseca da AnubisNetworks, empresa portuguesa que desenvolve produtos na área da segurança informática, “o que se passa hoje na Internet é um pouco um jogo do gato e do rato”, com as empresas a criarem produtos para combater os malware(o termo vem de malicious software), e os criadores de malware a inventarem formas cada vez mais sofisticadas de entrar nos computadores alheios.

“Na Anubis identificamos diariamente cinco milhões de dispositivos que estão comprometidos”, afirma. Estar comprometido significa que “houve um malwareque se instalou num computador e que este está a ser controlado à distância”. Foi provavelmente isto que aconteceu ao casal do filme Desligados que vê a sua conta bancária desaparecer. “Um caso destes pode dar-se através da recepção de um email, em que basta abrir um anexo para ficar com o computador controlado. Ou então navegar num site comprometido para isso acontecer”.

Francisco Fonseca garante que “aquilo que vemos no filme acontece diariamente a muita gente”, e conta como ele próprio recebeu recentemente um ficheiro de um amigo que lhe pareceu suspeito apenas porque não correspondia a um comportamento habitual desse amigo. O problema é que este tipo de ataque está a ganhar sofisticação, e se no passado “usavam ferramentas de tradução automática”, hoje aproximam-se cada vez mais de uma linguagem que já quase não levanta suspeitas.

A Anubis criou alguns produtos que visam defender-nos enquanto navegamos por esse “faroeste” que é a Internet – a expressão é de Francisco Fonseca, que compara a rede ao Velho Oeste onde “quando as pessoas saíam à rua podiam apanhar uma bala perdida”. Criou, por exemplo, um produto para a segurança do correio electrónico que detecta os emails suspeitos e os bloqueia, outro que trava o acesso a “sites perigosos”, que tanto podem ser os que tem “conteúdo adulto” (a evitar por crianças) como os que estão “comprometidos”. E ainda um terceiro produto para que as empresas, sobretudo bancos e sites de comércio electrónico, identifiquem por seu lado a presença de utilizadores “comprometidos” e lhes travem a entrada. Sendo que estes utilizadores comprometidos na grande maioria dos casos não sabem que o estão. E é isto que torna tudo mais complicado: é particularmente difícil chegar ao autor do crime.

Vítimas e atacantes

E é essa uma das razões pelas quais não é fácil levar um cibercrime a tribunal e ter sucesso – como mostra o filme e confirma Manuel Lopes Rocha. “Quando se trata da Internet, a prova é muito complicada”, diz o advogado. “Portugal sempre teve uma lei da criminalidade informática muito avançada, e temos uma Polícia Judiciária competente, mas é tudo menos fácil”. E há ainda muito a fazer. “Grande parte da nossa vida transferiu-se para o ciberespaço e os tribunais continuam a ser analógicos. Mais cedo ou mais tarde, vão ter que se tornar mais cibernéticos”.

Nos tribunais surge “um pouco de tudo, desde casos de fraudes com cartões, a problemas de propriedade intelectual ou difamações, mas não são muitos os que chegam ao fim com sentenças”. Terríveis são os casos de vinganças, “de colocação de imagens íntimas na Internet”, por exemplo. Até porque, lembra o advogado, “tudo o que está na Net nunca mais de lá sai, é eterno, tira-se de um sítio e aparece noutro.”

Nos últimos meses surgiram notícias de casos de adolescentes que se suicidaram depois de terem sido vítimas de ciberbullying em redes sociais – em particular na Ask.fm. Em alguns casos parece haver uma acção concertada para encher a página de uma pessoa de insultos e incentivos ao suicídio. Qual é o perfil mais comum dos “atacantes” e o das vítimas nestas situações? Tito de Morais diz não ter dados que lhe permitam traçar esses perfis, mas é taxativo: “O que leva os jovens ao suicídio é a depressão, não são as redes sociais. A esmagadora maioria dos jovens está mentalmente equilibrada e consegue ultrapassar esse tipo de situação”.

Salienta, contudo, que a crise em Portugal deixa as pessoas “sob grande stress diário, e às vezes os pais acabam por passar essas pressões para os filhos e estes descarregam em quem está mais próximo”. Os conflitos que existem entre adolescentes – inveja de um ser mais popular do que o outro, problemas de namoros – são os de sempre. “A diferença é que hoje quem está mais perto é quem está na Internet, e aí não há o feedback imediato. Quando se insulta alguém pessoalmente isso pode, pela reacção do outro, criar uma empatia e levar-nos a perceber o mal que estamos a fazer. A Internet facilita o magoar os outros e sair-se impune.”

Até que ponto estamos preparados para lidar com isto?, perguntamos a Alex Rubin. “Não sei”. Devemos desligar? “Não, devemos apenas passar mais tempo com as pessoas que amamos”.

 

Pode ver o trailer nos Videos des site